Suspensa entre o rosto do indivíduo e o olhar da cidade, a
máscara serve como síntese perfeita para um dos mais complexos desafios
enfrentados pelas sociedades democráticas, que é o de estabelecer as condições de
legitimidade para as ações individuais no espaço público.
Permitindo simultaneamente ocultar a identidade e ampliar a expressão, a imagem da máscara traz à tona uma diferenciação que, embora fundamental para enfrentar justamente esse desafio de legitimidade, tem sido amiúde esquecida no debate recente: indivíduo e cidadão são conceitos distintos. Nosso tempo gosta de esquecer essa diferença mas, sem ela, não se pode construir a democracia.
Permitindo simultaneamente ocultar a identidade e ampliar a expressão, a imagem da máscara traz à tona uma diferenciação que, embora fundamental para enfrentar justamente esse desafio de legitimidade, tem sido amiúde esquecida no debate recente: indivíduo e cidadão são conceitos distintos. Nosso tempo gosta de esquecer essa diferença mas, sem ela, não se pode construir a democracia.
O conceito de indivíduo refere uma existência biográfica, particular,
definida pela sua irredutível singularidade. Suas trocas preferenciais se dão
com aqueles que pensem e sentem como ele e sua tendência é a de construir um
espaço de relativa homogeneidade a partir do individual. O conceito de cidadão,
por outro lado, refere uma existência política, uma pertença a um coletivo
ordenado segundo regras que, por definição, se aplicam a todos igualmente. Sua
vocação é a do convívio em um espaço de heterogeneidade.
Sérgio Buarque de Holanda, com a agudeza habitual, já alertava para o perigo de se confundirem as duas esferas. Ele enfatizava que a família não é a extensão do Estado, como crê muitas vezes o senso comum, mas seu maior inimigo. Isto porque a família, que é o âmbito em que prospera o indivíduo, se rege pela lógica do afeto e da pessoalidade. O Estado, por sua vez, é o espaço em que age o cidadão, e se estrutura pela lógica do direito e da impessoalidade. Misturar os campos leva ao arbítrio, porque permite que aqueles que ocupam o poder se utilizem da máquina do Estado, que deveria estar a serviço de todos segundo a lei, para beneficiar alguns indivíduos segundo a lógica dos afetos privados.
A lição de Sérgio, escrita em 1936, permanece atual e emerge
ainda mais relevante agora, nos tempos que se vão chamando de pós-modernos.
Mais e mais, a conveniência individual arrisca se erigir como único fundamento
legítimo para as ações humanas, mesmo no espaço público. O ideal pós-moderno de
autenticidade de que fala Sennett - isto é, a ansiedade em comunicar
invariavelmente aos outros aquilo que sinto, que faz sentido para mim, no
momento e na forma que me parecerem necessários - vai silenciosamente
triunfando sobre a virtude política da civilidade. Essa, como o nome já sugere
(pois vem de civis), é a virtude do
cidadão. Ela implica a capacidade de moldar as ações próprias tendo por
referência a conveniência coletiva, e o compromisso de respeitar as normas
livremente pactuadas para a convivência com outros que são diferentes de mim.
Por supor uma limitação vinda de fora, isto é, por ser uma
virtude política, a civilidade é vista com suspeição por leituras de mundo que
elegem o indivíduo e suas razões como único elemento capaz de legitimar
qualquer ação. De maneira mais ou menos aberta, essas leituras parecem querer
elevar a princípio organizador de todas as trocas sociais a lógica do consumo
que é a de oferecer, cada vez mais, produtos que sejam user-friendly, isto é, que se adequem perfeitamente às necessidades
do indivíduo, que o tenham por parâmetro e que o eximam de qualquer esforço
adicional de adaptação. Elas vêem como
utopia antiquada os grandes projetos coletivos que pressupõem, necessariamente,
composição de interesses e algum grau de limitação dos próprios desejos em
favor do benefício geral.
Libertárias na superfície, tais proposições na verdade convidam
e podem mesmo abrir caminho a um terrível autoritarismo. Negando legitimidade
aos laços supra-individuais da cidade, elas permitem sujeitar o coletivo ao
individual. Separando indivíduo de cidadão, elas desvinculam o ser humano da
responsabilidade pelo contexto político de alteridade e diferença em que se
desenvolve a vida quotidiana.
No limite, elas tendem a construir não uma liberdade cidadã
mas uma anomia individualista que iguala, perversamente, poder de agir e
direito de agir. No processo, escamoteiam que a capacidade de agir exige meios
que estão, de forma muito clara, desigualmente distribuídos. Creio ser por isso
que Alain Touraine indica que uma sociedade de indivíduos pode destruir uma
sociedade de cidadãos.
Nos debates sobre as máscaras, essa diferença entre rosto
individual e face política é crucial. Manifestações políticas são feitas por
cidadãos que devem ter o orgulho e a responsabilidade de serem autores de seus
gestos. A reivindicação dentro do espaço coletivo implica para o Estado a responsabilidade
de garantir a livre expressão e para quem manifesta a renúncia ao anonimato do
privado. Renovar nossa democracia exige que busquemos o difícil equilíbrio
entre essas duas demandas e que o façamos agindo como cidadãos.
Artigo publicado em 15/09/2013, disponível em http://istoepiaui.com.br/baile-sem-mascaras/
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