quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Desde que eu não tenha que me transformar em uma pessoa melhor: o sem-sentido moral do direito em "Desonra", de J.M. Coetzee

Desonra, de J.M. Coetzee, pode ser lido como uma alegoria da falência da promessa de justiça implícita, de modos diversos, nos projetos da modernidade e da pós-modernidade. A jornada de David Lurie da cidade para o campo, da universidade para a fazenda, da civilização para o
 primitivo culmina em uma epifania inútil: é a brutalidade da força, velada ou explícita, que domina as relações humanas; e as instituições jurídicas são ora instrumentais para essa  violência, ora impotentes para impedi-la.

A narrativa se estrutura, significativamente, em torno de dois momentos de violência contra o corpo da mulher. Alvo fácil para o abuso prepotente da força institucional ou física exercida pelos homens, a mulher irá simbolizar, na narrativa de Coetzee, a multidão dos excluídos de qualquer proteção significativa nos mundos moderno e pós-moderno. Seu silêncio, sua resignação e sua resistência (Melanie, Lucy, Bev Shaw) resumem as alternativas possíveis para os que ocupam as franjas de um sistema de justiça estruturalmente incapaz de proteger a todos.

Esse artigo estabelece um percurso que reflete a oposição que estrutura os dois momentos cruciais da narrativa. Em sua primeira parte Eros, ele explora o sentido de justiça/injustiça presente no julgamento de David Lurie por seus pares na universidade.

Na segunda, Caos, examina o mesmo tema de justiça/injustiça no tratamento jurídico policial dispensado ao estupro de Lucy. A terceira, O Casamento de Cronos e Harmonia, explora as respostas antagônicas que os personagens David e Lucy oferecem à brutalidade crua de Cabo Leste e da Cidade do Cabo. A conclusão, Santo Hubert, procura sintetizar os argumentos apresentados e indicar por quê Desonra sugere uma leitura do Direito que o vê como incapaz de qualquer sentido moral relevante.


Eros


Ele se vê no apartamento da menina, no quarto dela, com a chuva caindo lá fora e o
aquecedor no canto soltando cheiro de parafina, ele ajoelhado em cima dela, tirando sua
roupa, ela com os braços caídos como uma morta. Fui um servo de Eros: é isso que ele quer dizer, mas será que tem coragem? Era um deus que agia em mim. Quanta vaidade!
E, no entanto, não era mentira, não inteiramente. Nessa droga de história toda havia
algo generoso que estava fazendo o possível para florescer. Se ao menos soubesse que o
tempo ia ser tão curto![1]



David Lurie tem uma vida, em muitos sentidos, invejável. Professor-adjunto da Universidade da Cidade do Cabo, com estabilidade no emprego, uma boa casa, e um salário que lhe permite comprar os favores de Soraya uma vez por semana, ele desfruta, sem grandes preocupações, das benesses que lhe oferece essa África do Sul em desenvolvimento. Separado duas vezes, com uma filha que mora no interior e uma exesposa que vê pouquíssimas vezes, ele está livre para fazer o que quiser, tendo se desembaraçado da presença sempre desafiadora de um outro com quem se divida afeto e intimidade.

Como freqüentemente acontece nesses casos de estabilidade assegurada, David assume uma atitude blasée em relação à vida, um enfado olímpico diante das engrenagens do quotidiano, que lhe parecem mesquinhas e obtusas. A reforma universitária sulafricana o obrigou a lecionar disciplinas que considera insossas ou mesmo ridículas (Comunicações 101 – “Capacitação em Comunicações” e Comunicações 201 – “Capacitação em Comunicações – Avançado”)[2] para alunos que considera medíocres. Ele continua ensinando porque é assim que ganha a vida[3]mas não vê qualquer sentido ou impacto mais profundo em sua atividade docente.

O que lhe permite sair do marasmo intelectual é sua paixão pela música e pela poesia, particularmente por Byron. Seu sonho é escrever uma ópera de câmara, Byron na Itália, uma meditação sobre o amor entre os sexos.[4] Aqui sim ele poderá expressar aquela verdade inefável que traz dentro de si, aquela sensibilidade fina que a imbecilidade reinante não consegue perceber. No entretempo, deve tolerar pacientemente as regras desse jogo lento e monótono que confina sua individualidade brilhante aos limites grosseiros das expectativas sociais.

Para além da música e literatura, o antídoto contra a pasmaceira mortal do dia-adia é o sexo. As visitas a Soraya, um oásis de luxe e volupté[5] conseguido graças à eficiência da Discreet Escorts[6] o satisfazem plenamente. Ele tem aí o prazer sem os vínculos perigosos da afetividade humana. Seu dinheiro compra algumas horas de uma mulher infalivelmente risonha, bonita e disposta, um não-sujeito à sua disposição, esquecível no minuto em que se cruza a soleira da porta na saída.

A relação com a prostituta resume a postura de David frente à vida: os pequenos prazeres individuais, fugazes, que a sociedade de consumo lhe permite aliviam a sensação de falta de sentido mais profundo, cuja lembrança incômoda muitas vezes só se pode silenciar com alguma bebida forte. Esse equilíbrio medíocre não o entusiasma, mas também não o desespera. David vive aquela despreocupação fundamental com a rotina que, nas palavras de Zygmunt Bauman,

“...só pode existir desde que ninguém ao redor comece a colocá-las [as receitas ligadas às
situações de rotina] em dúvida, pergunte sobre seus fundamentos e razões, ressalte as
discrepâncias, exponha a sua arbitrariedade. E é por isso que a chegada de um estranho
tem o impacto de um terremoto...O estranho despedaça a rocha sobre a qual repousa a
segurança da vida diária.”[7]

Para David, esse estranho chegará na figura de Melanie. Jovem aluna que aceita um convite para jantar após um encontro casual, Melanie se tornará para ele objeto de intenso desejo. David se utilizará de sua posição como professor, de sua experiência como homem mais velho e de seu arsenal (algo antiquado) de estratégias de sedução para convencê-la a permitir a intimidade física. Nem é preciso dizer, seu interesse não é por um relacionamento de longo prazo. David não está apaixonado pela garota, está atraído por ela. Byron é, para ele, um herói a ser emulado não só no campo literário.

Desde o início, ele intui que a menina não se sente inteiramente confortável com a situação, fato que não o incomoda seriamente. Na primeira vez em que fazem amor, ela fica passiva do começo ao fim mas, ainda assim, ele acha o ato agradável.[8] Quando ela, apressada e sem-jeito, sussurra que tem de ir embora, ele não faz o menor esforço para detê-la.[9] É mais ou menos o mesmo que acontece com Soraya, com a única diferença que, dessa vez, é a mulher quem sai e ele quem fica, convenientemente livre para esquecê-la no conforto de sua própria casa.

A súbita desgraça que irá se abater sobre David vem do fato, para ele aparentemente inimaginável, de que seus atos têm conseqüências. Esse outro de que se apossou mercê de sua posição de força recusa-se, apesar de sua aparente fragilidade, a desaparecer completamente. Pouco a pouco, o mundo privado de David, o casulo particular em que experimenta a existência, começa a ruir sob o peso de uma alteridade irredutível a seu valor de uso.

Primeiro o carro vandalizado, depois o esvaziamento da sala de aula, os rumores, os cochichos, a visita do namorado insolente. David fica surpreso, aborrecido com tanta comoção, que lhe parece despropositada e irritante. As regras do jogo sempre foram claras, embora jamais proclamadas à luz do dia. Como implicitamente reconhece Hakim, com sua camaradagem masculina (Pessoalmente, David, quero que você saiba que tem todo o meu apoio. De verdade. Essas coisas podem ser um inferno),[10] professores mais velhos relacionam-se com alunas mais novas desde sempre e essa situação é vantajosa para ambos. Ou ao menos assim parecem querer pensar os professores que acreditam que essas coisas (responsabilização, retribuição) são um inferno.

O problema, para David Lurie, é que existe um outro situado em um lugar de mundo em que a lógica asséptica da vantagem/desvantagem é percebida segundo parâmetros muito diferentes. Melanie Isaacs não é só uma aluna. Ela é namorada, filha, amiga. Sua vida se desenvolve em um mundo que vai muito além dos desejos de David.

Para a (incrível) surpresa do professor, o respeito ao limite do outro não é uma exigência de garota mimada, nem um arrufo feminino sem fundamento, mas constitui a razão mesma de ser de um enorme aparato institucional estabelecido pelo Estado moderno.

David tem que dar conta de suas ações, tem que submeter-se aos ritos de um inquérito, de peregrinar por todas as etapas do due process que, a despeito de sua própria vontade, o protege de acusações levianas. A irritação e o assombro com que responde a tudo (como é possível que haja um representante discente no comitê? Como é possível ser julgado por colegas a quem desprezo absolutamente?) mostram o quanto ele se sente superior ou externo a esse arcabouço institucional que organiza a vida coletiva.

Tendo sempre estado na situação dos que detém o discurso, David se vê agora objeto do discurso. É ele quem tem agora que silenciar ou dizer as coisas de um certo modoexatamente como Soraya, exatamente como Melanie, que não ousavam discutir com ele ou recusar-lhe os desejos. A experiência dessa impotência frente a uma estrutura mais ampla – a universidade, a imprensa, a justiça – que o exaspera por sua aparente novidade, irá surgir para ele como uma primeira epifania: o desejo privado não é um absoluto.

Há outros no mundo, por vezes abissalmente diferentes de nós, com os quais é preciso conviver, e há um arcabouço institucional-jurídico que busca justamente regular essa convivência.

E, no entanto, David se sente injustiçado. Paradoxalmente, sua indignação com todo o processo tem algo de compreensível, senão de justificável. Ele intui, como só é possível acontecer aos desvalidos, que muitos se utilizam desse arcabouço não para promover a igualdade ou o respeito ao outro, mas sim para tripudiar em cima de quem não se gosta, para exorcizar frustrações profundas e neuroses obscuras. Ele percebe que a estrutura que se põe em funcionamento não é neutra, nem isenta em sua substância, embora teoricamente o seja em seus ritos. Ela pode ser apropriada pelas vontades de grupo e pelos desejos individuais dos julgadores - desejos, em sua essência, não diferentes daquele que o colocou no meio do imbróglio e pelo qual está sendo processado.

Daí sua obstinação em reconhecer o fato mas não reconhecer a culpa. Esse é um ponto central do romance. Em seu périplo jurídico na Universidade, David se recusa a negar a moralidade de seus atos. Ele acredita, de modo absoluto, que tem o direito de expressar-se sexualmente como bem entender, desde que não force ostensivamente a outra parte. A instituição pode convencê-lo de que há razões práticas para sua condenação – e, como homem prático, David não se opõe a elas. Mas ninguém pode convencê-lo de que a lógica segundo a qual entende o mundo – que o fundamento moral da ação do sujeito é a busca da realização de seus desejos particulares – esteja equivocada.

O único caminho, portanto, é deixar esse mundo algo hipócrita em que a neutralidade das instituições é uma farsa a serviço de vinganças pessoais travestidas de politicamente correto. Não vale nem a pena esperar pelo veredito, já que essa justiça é uma pantomima, um jogo em que aquele que cai é sempre trucidado pelos que permanecem de pé. Aborrecido e perplexo (afinal, nunca estivera desse lado do sistema), mas não convencido, David deixa para trás a Cidade do Cabo e suas instituições em busca de refúgio em um lugar em que elas não o alcancem. O homem urbano e solitário parte agora em busca do campo e da família. Uma outra epifania o aguarda.



Caos

Estupro, deus do caos e da mistura, violador da reclusão.[11]
Um risco possuir coisas: um carro, um par de sapatos, um maço de cigarros. Coisas
insuficientes em circulação, carros, sapatos, cigarros insuficientes. Gente demais, coisas de
menos. O que existe tem de estar em circulação, de forma que as pessoas possam ter a
chance de ser felizes por um dia. Essa é a teoria; apegar-se à teoria e ao conforto da
teoria. Não a maldade humana, apenas um vasto sistema circulatório, para cujo
funcionamento piedade e terror são irrelevantes.9 Idem, ibidem [12]


David chega à cidade de Salem, mais distante da Cidade do Cabo em sua lógica, seu tempo e seus valores do que permitiria supor a distância não tão grande que separa os dois espaços: uma viagem que dura apenas metade de uma manhã o leva de um mundo a outro. E essa diferença entre os dois lugares será composta por uma outra, ligada não ao mundo exterior, mas ao personagem concreto: David, solitário por opção, se vê compelido ao convívio quotidiano com o outro.

E esse outro é seu antípoda perfeito: mulher, lésbica, calada, rude, amante do campo, Lucy é o inverso mais acabado de seu pai. Ele mesmo reconhece que há um abismo entre os dois, uma dessemelhança tão pronunciada que o faz perguntar se, de fato, um é fruto do outro:  engraçado que ele e a mãe dela, urbanos, intelectuais, tivessem produzido esse retrocesso,  essa sólida colona. Mas talvez não tenham sido eles que a produziram: talvez a história tenha um papel maior.[13]

A diferença brutal entre ambos é superada, entretanto, por dois elementos provisoriamente mais fortes. Primeiro, o sangue. Pai e filha admitem tacitamente a força de um afeto primal, que prescinde de explicações ou justificativas.

Não estão extasiados com o reencontro, mas ele também não os incomoda e, em que pese um certo desconforto com a novidade da presença recíproca, há um módico de alegria em reencontrar alguém com quem se compartilha uma ligação tão profunda.

Segundo, a exclusão. Tanto Lucy como David se encontram fora de tudo aquilo que a cidade significa. Ela por opção, ele a contragosto, ambos se percebem incompatíveis com os modos de organização de uma civilização a apenas algumas horas de distância.

Assim, como dois náufragos em uma ilha deserta, eles se encontram na fazenda de Lucy. Esse acordo tácito que possibilita o exílio de David irá logo se romper. O pai, confiante e acelerado como são aqueles que vivem por longo tempo nos centros urbanos, logo se aborrece com essa vida em que bodes, cachorros e batatas são levados a sério e ocupam a maior parte do tempo. A pasmaceira reinante, e sua estupidez profunda, cristalizam-se, para ele, na figura de Bev Shaw. David, desde o início não gosta dela. Ele não gosta de mulheres que não fazem nenhum esforço para ficar bonitas.[14]

E Bev não faz nenhum esforço. Pior que isso, ela administra um refúgio para animais que também funciona, ainda que muito precariamente, como clínica veterinária. Ela sintetiza aquela preocupação com o coletivo, com os fracos, que sempre exasperou David como uma tentativa patética de dar sentido a uma existência na verdade vazia:


“Desculpe, filha, mas acho difícil me interessar pelo assunto. É admirável o que você faz,
o que ela faz, mas para mim quem cuida dos animais é um pouco como certo tipo de
cristão. É todo mundo tão alegre e bem-intencionado que depois de algum tempo você fica
com vontade de sair por aí estuprando e pilhando um pouco. Ou chutando gatos.” [15]

Não tardará muito para que David tenha uma visão muito diferente daquilo que está envolvido em sair por aí estuprando e pilhando. Por enquanto, essa brutalidade é para ele uma ficção menos palpável que as aventuras amorosas do Don Juan de Byron e, portanto, as ações que incorporam tal brutalidade como uma possibilidade são, para ele, inócuas na melhor das hipóteses, hipócritas na pior.

Mas no interior dessa África do Sul, nesse espaço de natureza, a violência não se faz esperar muito. Na banalidade de um dia qualquer, três estranhos invadem a casa de Lucy, estupram-na repetidamente enquanto David, aprisionado no lavabo, ouve impotente toda a cena. Quando, por um segundo, é libertado por um dos agressores, é apenas para que esse lhe tome as chaves do carro, ensope-lhe a cabeça com metanol e ateie fogo. Na agonia em que se encontra, ouvirá ainda a execução estúpida dos cachorros indefesos, presos no canil, mortos um a um por tiros de carabina.

A brutalidade crua e meticulosa dos assaltantes é para David uma segunda epifania. A sem-cerimônia com que os mais fortes abusam dos mais fracos aparece-lhe com clareza meridiana. O mundo em que velhos cultos flertam com jovens esperançosas está agora a galáxias de distância. Aqui vieram três homens armados que, sem remorsos, decidem conseguir sexo e bens por meio da violência. Pela primeira vez, David pensa a partir da perspectiva das mulheres e começa a entender (ainda muito confusamente) o que esse mundo reserva para elas:

Ela [Lucy] não responde. Prefere esconder a cara, e ele sabe por quê. Porque está em
desgraça. Porque sente vergonha. Foi isso que os visitantes conseguiram; foi isso que
fizeram com essa jovem moderna, confiante. A história percorre o distrito como uma
mancha. Não é a história dela que se espalha, mas a deles: eles são os donos. Como eles a
puseram em seu lugar, como lhe mostraram para que serve uma mulher. [16]

Nesse momento, David coloca todas suas esperanças de reparação e justiça no funcionamento das instituições, aquelas mesmas instituições que lhe pareciam fúteis ou hipócritas a apenas alguns dias. É preciso ir à polícia, é preciso encontrar os culpados, uni-los. Para seu assombro, entretanto, Lucy proíbe-lhe de mencionar o estupro e não o refere aos policiais. Se ela denuncia o roubo às autoridades é apenas para receber a compensação econômica do seguro, não a reparação moral da justiça.

David não entende a filha, revolta-se, argumenta com ela que é necessário fazer algo por causa do coletivo, os homens poderão atacar novamente, destruir a vida de outros. Mas Lucy devolve ao pai, com valência invertida, o argumento da singularidade individual que ele tanto prezara em sua vida na cidade:

“Você quer saber por que eu não fiz uma determinada queixa para a
polícia. Vou contar por quê, contanto que você prometa não puxar o assunto outra vez.
O motivo é que, de minha parte, o que aconteceu comigo é uma questão particular. Em
outro tempo, outro lugar, poderia ser considerada uma questão pública. Mas aqui, agora,
não é. É coisa minha, só minha.”
“Aqui quer dizer o quê?”
“Aqui quer dizer a África do Sul.”  [17]


Lucy revela a David a realidade crua de que as instituições são inúteis para recompor o que de fato importa quando se trata de questões viscerais, arraigadas em estruturas de poder que naturalizam conjuntamente a violência, a opressão e a hierarquia entre seres humanos. A violência a que Lucy está exposta não é um episódio singular em sua vida, é sua matéria quotidiana. Os olhares de desprezo para a lésbica, as ameaças, os desaforos, a exclusão de espaços de poder não irão embora se a polícia prender os culpados, se esses forem levados a julgamento. O Direito não tem o condão de realizar essa justiça e pode, no limite, ampliá-la, na medida em que à injúria do assalto adicionar o insulto de fazer com que ela seja vista como tola por acreditar que o sistema possa reordenar o mundo.

O casamento de Cronos e Harmonia [18]

Não acho que a gente esteja preparado para morrer, nenhum de nós, não sem
acompanhamento.[19]

Desonra apresenta, assim, duas situações de julgamentos frustrados, de julgamentos que não chegam perfeitamente ao fim. David deixa a cidade antes da decisão final da Universidade, Lucy nem sequer leva aos tribunais os responsáveis pelas atrocidades que sofreu – embora os encontre, poucos dias depois, na festa promovida por seu empregado/sócio Petrus. Em um caso, como em outro, o sistema de decisão e de aplicação da justiça é visto como falho ou inútil. Em ambos em casos, também, o sistema aparece como incapaz de dar conta das questões morais verdadeiramente relevantes. David acredita ter direito de viver seus desejos, não importa o que diga o comitê; Lucy acredita que não há como reverter a brutalidade a que está diariamente exposta, não importa o que faça a polícia.

O que sobra, para ambos, é buscar algum sentido de justiça, não nas instituições, mas em uma narrativa que possam tecer para suas vidas. Uma narrativa em que se possa sofrer em paz, como diz Lucy, as misérias da pequena individualidade humana.

Reduzidos pai e filha ao mais primitivo da existência – seus dias se resumem a garantir com esforço, um mínimo para seguir adiante - eles estão fora tanto do fascínio da sociedade de consumo que rege a cidade, como da lógica silenciosa que rege as relações no campo. Párias para brancos e negros, os dois irão distanciar-se, ainda uma vez, na forma de responder à exclusão.

Lucy escolhe uma esperança grave, sem romantismo, mas sólida como seu corpo de matrona. Um filho da violência, um filho que é fruto da agressão e da submissão odiosa e humilhante pode ser amado, pode ser um caminho para o futuro porque, descartadas as ilusões, talvez seja essa a história que desde sempre forjou o mundo (“Está me dizendo que vai ter essa criança?” “Vou” “Um filho daqueles homens?” “É.” “Por quê?” “Por quê? Eu sou uma mulher, David.”).[20]

,A formação clássica de David, sua noção de hierarquia e decência, seus préconceitos que, a despeito dele mesmo, se manifestam no modo de lidar com Cabo Leste, com Petrus e com Pollux ([Lucy:] “O nome dele é Pollux” [David:] “Não é Mncedisi? Nem Nqabayakhe? Nada impronunciável, só Pollux?”)[21] impedem que ele seja capaz de ver qualquer coisa de positivo nessa história (para ele às avessas) de negros dominando brancos, do campo dominando a cidade.

Para Lucy, entretanto, essa aparente reversão é, na verdade, a manifestação de uma continuidade mais profunda, de uma relação permanente entre os que fazem e os que sofrem a violência, que empurra uns e outros a um compromisso sem honra, mas possível. Se conseguir subtrair-se à face mais crua da violência – e seu filho é exatamente essa possibilidade – Lucy já sentirá que algo de importante foi conseguido. Ela não irá desistir: “Pare de chamar isso aqui de fazenda, David. Não é uma fazenda, é só um pedaço de  erra para cultivar coisas, nós dois sabemos disso. Não, eu não vou desistir”.[22]

David irá derivar para uma desesperança estóica, uma aceitação sem heroísmo do sem-sentido da vida. O pai de Melanie lhe é odioso em sua tentativa de significação do mal e do sofrimento. Eles não são instrumentos da vontade de Deus, que pode nos purificar e levar a um caminho mais avançado, são apenas a expressão da existência humana sem retoques:

Não é um castigo que eu recuse. Não reclamo dele. Ao contrário, estou vivendo o castigo
dia a dia, tentando aceitar a desgraça como meu estado de ser. Será que basta para Deus,
o senhor acha, eu viver em desgraça para sempre? [23]


David abandona a vida como projeto. Sua ópera sobre Byron é, cada vez mais, sobre uma Teresa velha e ridícula, que sofre inutilmente por uma amante infiel, morto há muito tempo. Ele percebe o contínuo perfeito que há entre o mundo da cultura elevada da ópera e o mundo primitivo dos animais aleijados, rejeitados: imagina-os participando da cena, misturando seus uivos as agudos desesperados da soprano. [24] Excluído de sua posição de força, incapaz de ver sentido em qualquer outra, David desiste da busca de qualquer fundamento mais profundo para seus atos. Quando Bev Shaw lhe pergunta se irá adiar, por uma semana, a execução do vira-latas pelo qual se afeiçoou, David decide que, no final das contas, não vale a pena: “Achei que ia deixar esse para a semana que vem”, diz Bev Shaw. “Vai desistir dele?” “É. Vou desistir”.[25] Santo Hubert

Por caminhos opostos, Coetzee desmonta tanto as razões modernas para acreditar na justiça (as instituições judiciárias não fazem sentido na África do Sul), como as tentativas pós-modernas de implementá-las (o comitê de pares, com seu arremedo de due process, é uma farsa em que se dissimula mal o interesse político pequeno, verdadeiro fundamento das ações tanto dos que tentam ajudar David, como dos que buscam destruí-lo). Os personagens desanimam da possibilidade de essa estrutura mais ampla tocar significativamente as dimensões realmente importantes da vida.

E é nesse sentido que Bev Shaw aparece, em Desonra, como uma síntese da única possibilidade de ação humana dotada de algum sentido. Ela vê o sofrimento dos animais, dos menos relevantes entre os menos relevantes – cachorros perdidos, gatos doentes – e se compadece deles. E os cachorros, ao longo de todo o romance, são o resumo silencioso da experiência humana, com seus sonhos e projetos:


“Que humilhação” ele {David] diz afinal. “Tantos projetos para terminar assim.”
“É, eu concordo, é humilhante. Mas talvez seja um bom ponto para começar de novo.
Talvez seja isso que eu [Lucy] tenha de aprender a aceitar. Começas do nada. Com
nada. Não com nada, mas...Com nada. Sem cartas, sem armas, sem propriedade, sem
direitos, sem dignidade.”
“Feito um cachorro.”
“É, feito um cachorro”.[26]


Bev Shaw não espera mudar a sorte nem de bichos, nem de homens, nem tampouco reverter o fluxo da história – afinal, é bom lembrar, estamos nessa África em que, alegórica e (muitas vezes) literalmente, a esperança é uma ilusão. Mas, apesar de tudo, sobra a possibilidade desse último gesto: na passagem final que não compreendemos, um movimento silencioso tranqüiliza e parece justo – a presença solidária de um outro a meu lado, um outro que me aparece não como um objeto, uma ameaça ou um rival mas como alguém que, diante do mistério, ajuda a perceber, finalmente, o valor da compaixão e a possibilidade da fraternidade como forma máxima de justiça.

[1] COETZEE, J. M., Desonra – trad. José Rubens Siqueira. Companhia das Letras: São Paulo, 2001, PP.104-105.
[2] p.10
[3] p. 11
[4] p.10
[5] p.7
[6] P.8
[7] BAUMAN, Zygmunt – O sonho da pureza in O mal-estar da pós-modernidade. Trad. Mauro Gama e
Cláudia Martinelli Gama. Jorge Zahar: Rio de janeiro, 1997, p.19
[8] pp.26-27
[9] Idem, ibidem
[10] p.51
[11] P. 121
[12] p.114
[13] p.73
[14] p. 84
[15] p. 86
[17] p. 129
[18] p.215
[19] p. 98
[20] p. 223
[21] p.225
[22]
[23]
[24] p.241
[25] p. 246
[26] p. 231

Esse artigo foi publicado no periódico Philia & Filia, disponível em http://seer.ufrgs.br/Philiaefilia/article/view/19620 

Um comentário :

  1. Análise fantástica de obra literária complexa, contundente.

    O trecho "O que sobra, para ambos, é buscar algum sentido de justiça, não nas instituições, mas em uma narrativa que possam tecer para suas vidas. Uma narrativa em que se possa sofrer em paz, como diz Lucy, as misérias da pequena individualidade humana." é especialmente marcante, e remete ao Grande Sertão: Veredas, onde o que importa é contar a história; remete ao papel "organizador" (ou não) da literatura em nossas vidas, tão marcadas pelo incerto e fugidio. Ao contar a história, tenho a ilusão de que a controlo um pouco; ao ouvir outras, consigo solidariedade para minha posição de nau sem rumo, não estou mais sozinho. Parabéns mais uma vez, professor.

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